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O que a indústria da moda ainda não entendeu sobre: sustentabilidade

No início da década de noventa, o termo upcycling mal existia e ainda levaria muitos anos para ganhar popularidade no Brasil. Sem saber, era justamente isso que a jovem estilista pernambucana Magna Coeli fazia em sua pequena confecção em Recife. O ano era 1990 e, incomodada com tanto desperdício, ela decidiu reaproveitar todas as sobras têxteis para criar novas peças de roupas e acessórios. “Para mim, lixo nunca foi lixo, sempre foi matéria-prima para criar coisas”, lembra.

Apesar do estranhamento que o modelo de negócio, até então uma novidade, causou na época, a empreitada deu certo. Assim, nasceu a Refazenda (@refazenda), que há 32 anos promove a reutilização de tecidos que, em negócios tradicionais da moda, seriam jogados fora. Por três vezes, a marca foi citada em relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU) Meio Ambiente como case de economia circular com longevidade. Agora, três décadas após Magna constatar que o desperdício era um problema ambiental, os impactos da indústria têxtil já estão sendo sentidos e os números são preocupantes.

No Brasil, quase 9 bilhões de peças são confeccionadas por ano, o que daria, em média, 42,5 peças por habitante. Em São Paulo, na região do Brás — considerado o maior polo de confecção de roupas do País — é descartada, por dia, uma quantidade equivalente a aproximadamente 16 caminhões de lixo têxtil (boa parte disso são sobras de produção). Os dados fazem parte do Fios da Moda, primeiro relatório que sistematiza dados sobre a indústria têxtil no Brasil, feito pelo Instituto Modefica em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a consultoria internacional Regenerate Fashion.

Marina Colerato, diretora do Instituto Modefica (@modefica), avalia que os indicadores mostram, especialmente a partir de uma perspectiva de uso de recursos e redes produtivas, que o cenário é ruim e que o País está aquém das demandas ambientais desse tempo. “Temos até 2030 para reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e há marcas dizendo que até 2050 vão neutralizar, ou seja, não é nem reduzir”, observa. Ela reforça que, no Brasil, isso é ainda mais desafiador porque é um cenário de micro e pequenas empresas junto com gigantes do varejo, nacionais e multinacionais.

“Não dá para exigir de forma igual de todos os atores porque o poder deles é completamente diferente. Enquanto os micro e pequenos mantêm atividades sob uma ótica de sobrevivência, o grande varejo tem uma concentração de poder que se traduz em capital humano, financeiro, criativo, e poder de influência”, destaca Marina, e completa. “Temos um cenário complexo, com uma indústria envelhecida e lideranças com pensamentos muito arcaicos frente às urgências desses tempos.”

Por ano, a indústria da moda global produz 150 bilhões de peças, sendo que pelo menos 30% delas nunca são vendidas e outro terço só sai das lojas com desconto, segundo levantamento da ShareCloth. De acordo com relatório da Ellen MacArthur Foundation, 73% dos resíduos têxteis são incinerados ou jogados em aterros sanitários — o que equivale a um caminhão de lixo de roupas por segundo. Desse montante, somente 12% vão para a reciclagem e menos de 1% é usado para fabricar novas peças. Além disso, dados da McKinsey & Company mostram que o número de vezes que uma peça de vestuário é usada antes de ser descartada diminuiu 36% no período de 2000 a 2014.

Um deserto de roupas

Além da economia perder 460 bilhões de dólares em gastos para se livrar de roupas que as pessoas estão jogando fora que poderiam continuar sendo usadas, anualmente aterros sanitários do mundo inteiro incineram 12,8 milhões de toneladas de têxteis, liberando Gases de Efeito Estufa, que agravam os sintomas da crise climática e ecológica do planeta. Nuvens de fumaça tóxica são comuns em cemitérios de roupas usadas, como o de Gana, na África Ocidental, onde 15 milhões de peças chegam a cada semana, vindas de países ricos. Boa parte disso não pode ser revendida pelos comerciantes locais devido à má qualidade e acaba indo parar nos lixões. Mas não é preciso ir tão longe para constatar o tamanho do impacto ambiental causado pela chamada fast fashion, modelo de negócio que predomina na indústria da moda e tem como base a oferta constante de produtos a preços baixos.

O deserto do Atacama, um dos cartões-postais do Chile, também se tornou uma lixeira a céu aberto da indústria da moda. As roupas, conforme apuração da agência de notícias Associated Press, são fabricadas em Bangladesh e na China e enviadas a lojas da Europa, Estados Unidos e do próprio continente asiático. No decorrer desse trajeto, parte do que não é comprado acaba sendo adquirida por vendedores de segunda mão na Zona Franca de Iquique, local que recebe cerca de 59 mil toneladas de roupas por ano. O objetivo é revender a outros países latinos. No entanto, mais uma vez, peças que ficam de fora da comercialização têm como última parada o aterro.

Não à toa, imagens de uma montanha colorida têxtil no Deserto do Atacama viralizaram nas redes sociais nos últimos meses, o que levantou um debate sobre os impactos do setor no meio ambiente e, sobretudo, a necessidade de práticas mais sustentáveis na indústria da moda, que a tornem, portanto, mais responsável e transparente quanto àquilo que produz todos os anos. É o que defende Fernanda Simon, diretora do Instituto Fashion Revolution Brasil e editora contribuinte de sustentabilidade da Vogue Brasil.

Viscose, poliéster e petróleo

“Pessoas falam de moda sustentável como se fosse possível existir um produto que seja realmente 100% sustentável, e não é. O que podemos falar é de práticas e processos mais sustentáveis, de marcas que sejam mais engajadas e transparentes. Ou seja, que contemplem os pilares do desenvolvimento sustentável: social, ambiental, econômico e cultural. Não basta apenas que a marca tenha uma iniciativa, ela precisa estar dentro desse equilíbrio”, pontua a ativista, que em 2014 trouxe para o Brasil o Fashion Revolution (@fash_rev_brasil), movimento criado na Inglaterra após o desabamento do Rana Plaza, edifício que abrigava confecções de roupas e produzia para marcas conhecidas no mundo todo em Bangladesh. A tragédia aconteceu em 2013 e vitimou mais de 3,5 mil trabalhadores, entre mortos e feridos.

Yamê Reis, idealizadora do Rio Ethical Fashion (@rioethicalfashion), primeiro Fórum Internacional de Moda Sustentável do Brasil, e coordenadora de Design de Moda no Istituto Europeo di Design (IED) do Rio de Janeiro, acrescenta que a sustentabilidade se tornou uma questão central para o setor da moda. “Falar de sustentabilidade hoje é falar do futuro dessa indústria. Não existe perspectiva de futuro para esse setor que não considere a questão da sustentabilidade”, afirma.

A moda tem um papel fundamental na busca por um mundo mais sustentável e consciente quanto às formas de consumo, acredita Giovanna Nader, comunicadora socioambiental e criadora do Projeto Gaveta (@projetogaveta), iniciativa que surgiu em 2013 com a ideia de difundir o conceito de clothing swap no Brasil e criar uma rede onde os participantes pudessem trocar, entre si, roupas que não usam mais. A iniciativa de Giovanna e Raquel Vitti Lino é um movimento que promove conscientização quanto a uma moda mais humana, real e sustentável. “Muita gente acha fútil falar de moda enquanto existem problemas mais urgentes no País. Mas quando olhamos para a crise climática, por exemplo, vemos que a indústria da moda é responsável por números alarmantes. Então, quando falamos de moda e sustentabilidade, estamos usando um tema, um mercado, que é muito grande e expressivo dentro de toda essa maneira errada que a gente tem de produzir e consumir que, por outro lado, é muito próximo de muita gente, afinal, todo mundo usa roupa, então a moda deveria ser para todo mundo”, comenta.

De acordo com a ONU, a indústria têxtil é responsável pela emissão de cerca de 8% dos gases tóxicos que contribuem para as mudanças climáticas e a segunda mais poluidora do mundo, ficando atrás apenas da indústria petrolífera. Para se ter ideia, a produção de roupas — que praticamente dobrou nos primeiros 15 anos deste século — é responsável por 20% do desperdício de água no mundo, e a confecção de um par de jeans, por exemplo, consome 7,5 mil litros de água. Os efeitos dessa cadeia de produção desenfreada não param por aí.

Além de ter o petróleo como base e levar mais de 200 anos para se decompor, o poliéster (conhecido como PET), uma das fibras sintéticas mais utilizadas na produção de roupas, é responsável por liberar uma alta quantidade de microplásticos na água, encontrados, inclusive, no estômago de animais marinhos, como revelam pesquisas científicas. Ao bater peças desse material na máquina de lavar, por exemplo, diversas partículas de plástico se soltam na água e percorrem um longo trajeto de contaminação até chegar nos oceanos. Outra fibra artificial bastante utilizada na moda é a viscose. Proveniente da celulose, sua produção requer a derrubada de árvores de florestas nativas, inclusive ameaçadas de extinção — o que inclui a Amazônia.

Natural e antiecológico

Embora natural, o cultivo do algodão — que desde a Revolução Industrial (1760 – 1840) é a fibra favorita da indústria têxtil — é o quarto que mais consome agrotóxicos no Brasil, com destaque para o glifosato, que corresponde a mais da metade do volume de agrotóxicos comercializados no País. Só o algodão é responsável por aproximadamente 10% do volume total de pesticidas utilizados em território nacional, o que, consequentemente, também prejudica a água e o solo.

Em 2020, o Brasil foi o quarto maior produtor de algodão e o segundo maior exportador do mundo, de acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). No entanto, mesmo com a utilização de agrotóxicos e fertilizantes, o cultivo de algodão no País recebe atributos de produto sustentável, inclusive com certificação internacional. Essa é uma das críticas que Yamê Reis, que é mestre em Sociologia Política, faz no livro O agronegócio do algodão: meio ambiente e sustentabilidade (Editora Livros Ilimitados).

Do jeito certo

Relatórios como o Fios da Moda mostram que quando a produção de algodão é agroecológica, ela tem impacto positivo sobretudo na qualidade de vida das mulheres camponesas e na soberania alimentar. Quem sabe disso na prática é Nelsa Nespolo, diretora-presidente da Justa Trama (@justa.trama), marca de algodão agroecológico. Há 17 anos, ela criou a cooperativa, que tem como missão promover a economia solidária e o comércio justo. Atualmente, cerca de 500 pessoas nas cinco regiões do País fazem parte desse trabalho. Produtores e costureiras cooperados chegam a receber remuneração de 30% a 50% acima do mercado.

Nelsa conta que a Justa Trama surgiu para fazer contraponto a duas frentes que ainda hoje lhe causam indignação: a desigualdade social, que envolve o acúmulo de riquezas e a exploração da mão de obra, principalmente de mulheres, e os impactos provocados pelo setor têxtil no meio ambiente. “Por meio do plantio agroecológico, nós nos propusemos a fazer uma roupa que não usasse produtos químicos, que não usasse agrotóxicos. Temos muito orgulho da história que estamos construindo porque é um cuidado com o planeta e com as pessoas que vivem nele, elemento fundamental de tudo que estamos fazendo. Com isso, conseguimos fazer um valor justo para a nossa roupa, valorizando cada uma das etapas e respeitando o consumidor”, diz Nespolo.

4 lições

“As pessoas estão cada vez mais preocupadas não só em comer mais saudável, mas também em se vestir com mais identidade cultural e consciência”, avalia Magna Coeli, da Refazenda. Mas, em decorrência de sucessivas crises econômicas, tais anseios têm ficado em segundo plano. “O consumidor não tem que pagar mais para ter uma peça mais sustentável. Todo produto deve ter essa preocupação de impacto ambiental e ter custo competitivo”, completa. Nespolo, por sua vez, compreende a moda como parte de um sistema capitalista que traz em sua essência a exploração de pessoas e o consumo desenfreado. “A indústria ainda não entendeu que está dentro desse sistema e isso é muito triste porque o que importa é só que as pessoas comprem muito. Não entendeu que esse tipo de consumo destrói o planeta e que a gente precisa recuar.”

Para as especialistas ouvidas pela Vogue Brasil, o setor ainda tem lições desafiadoras para aprender — e urgente, a seguir:

1. Sustentabilidade não é uma escolha

Para Marina Colerato, que também é pesquisadora de economia política, mudanças climáticas e questões de gênero, as gigantes da economia global não entenderam que sustentabilidade não é uma escolha por gosto, nem por competitividade de mercado. “Sustentabilidade é uma questão ética e moral quando a gente está falando de 503 crianças morrendo ao ano por contaminação de glifosato, o agrotóxico mais usado na cultura do algodão. Não estamos falando de competitividade no mercado se eu tenho um algodão agroecológico. Estamos falando de um imperativo ético e moral que está faltando e muito, inclusive nas empresas que se vendem como sustentáveis, para que a gente avance na pauta e veja compromissos reais firmados”, ressalta. É natural que tais compromissos possam custar uma parcela de lucro, segundo ela. “Mas, sendo um compromisso ético e moral em relação às urgências do nosso tempo, estamos vendo uma série de questões climáticas, como em Petrópolis (RJ), impactando a população. Não é o futuro, é o presente, e já está acontecendo. Os industriais que entenderam isso estão se agilizando. Os que ainda não, estão colocando em risco o próprio futuro.”

2. O mundo não precisa de mais roupas

Giovanna Nader, que em 2021 publicou o livro Com que roupa?: Guia prático de moda sustentável (Editora Paralela), frisa que por mais que se fale em slow fashion, muita coisa nova ainda é produzida, a exemplo dos constantes lançamentos de tendências. “O mundo não precisa de mais roupas. As marcas precisam entender sobre a circularidade da moda e que é preciso inventar novos negócios com roupas usadas, seja ele aluguel, troca, empréstimos, upcycling, etc. Mas parece que não estão dispostas porque estamos falando de outra coisa que não entenderam: decrescimento, que é desacelerar e lucrar menos. Para a gente falar de sustentabilidade, precisamos falar disso. É impossível ter sustentabilidade dentro desse modelo de negócio atual.”

3. O greenwashing é um problema

“Ao meu ver, a indústria não questionou. Essa hegemonia cultural do agronegócio no Brasil é tão forte e poderosa que está funcionando e em ascensão, ao ponto dos atores da nossa indústria não questionarem. Eles simplesmente foram cooptados, não se deram ao trabalho de investigar o que era esse algodão. Houve várias visitas ao campo, mas o discurso é bem embalado”, critica Yamê Reis ao se referir ao greenwashing, conhecido também como “lavagem verde”. “Exemplo disso é chamar agrotóxico de defensivo agrícola. Ou seja, todo um discurso que camufla pontos delicados.”

4. A moda é uma linguagem cultural fortíssima

Para Magna Coeli, a moda tem dupla personalidade. “De um lado, não pensa, não para, não calcula, não percebe os impactos e as contradições que vive, seja no Brasil ou na China. Do outro, é uma linguagem cultural fortíssima, com uma pegada ambiental que pode ensinar a todo mundo como fazer um produto bonito e se reinventar todo dia. Sem dizer que a moda é extremamente empregadora e, como precisa de muita mão de obra manual, não vai ser robotizada tão cedo.” Para Fernanda Simon, a moda é uma poderosa ferramenta de transformação. “A moda pode trazer condições de trabalho, ela emprega e pode oferecer autonomia — financeira, emocional, e de identidade —  para mulheres [que representam 60% da mão de obra da indústria têxtil no Brasil, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção – Abit]. Então, a moda tem todo esse poder, tanto lúdico quanto de matéria, de fazer parte da construção de uma sociedade mais próspera economicamente, já que pode gerar lucro e riqueza, desde que essa riqueza esteja dentro de um sistema equilibrado, socialmente justo e ambientalmente consciente.”

FONTE: VOGUE

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