Moda faz a lição de casa: segunda indústria mais poluente do planeta vira a chave para o mundo sustentável
Quando em 2016 o estilista brasileiro Jum Nakao expôs sua criação Luxdelix, vestido feito de sacos de lixo em um evento no Museu de Arte Moderna de São Paulo, jamais poderia imaginar a força da pressão que a indústria viria a sofrer para deixar de lado práticas predatórias e se reinventar em um modelo mais sustentável. Com os olhos do capital voltados para a agenda ambiental, ficou muito feio sustentar o título de segunda indústria mais poluente do mundo (atrás apenas da indústria petrolífera). Vale o parêntesis: segundo o relatório Rio Ethical Fashion de 2021, o setor da moda responde por 8% das emissões de gases de efeito estufa e gera um volume desigual de resíduos — somente nos Estados Unidos, 14 milhões de toneladas de roupas são jogadas fora por ano. No Brasil, são mais de 4 milhões. Com a reputação em xeque o movimento pela mudança começou e agora é impulsionado por números que fazem brilhar os olhos dos empresários. De acordo com relatório da Research and Markets, o mercado de moda sustentável deve passar de US$ 6,3 bilhões em 2019 para US$ 15,2 bilhões de dólares até 2030.
Outro componente completa a equação que pode resultar na transformação estrutural do setor. E ele é o tal do consumidor. Na opinião de especialistas do mercado, como a CEO do Instituto Capitalismo Consciente, Daniela Garcia. “As novas gerações estão tão adeptas à sustentabilidade que as empresas compreenderam que atender à demanda é questão de sobrevivência”, afirmou. Mas o primeiro grande case veio muito antes dessa nova geração, quando em 1994 o jovem americano Yvon Chouinard, fundador da marca de roupas Patagônia, lançou a primeira linha de casacos feitos com material reciclado dos Estados Unidos. Dois anos depois, a marca substituiu todo o algodão tradicional de suas coleções pelo orgânico e em 2019 lançou a Worn Wear ReCrafted, em que roupas usadas eram costuradas à mão transformando-se em novas peças. Mas foi em 2011 que ele quebrou paradigmas ao publicar um anúncio no The New York Times dizendo: “Não compre esta jaqueta”.
Onze anos depois, o brasileiro começa a aderir à nova moda. Marcas de roupas e acessórios estão mudando suas linhas de produção e sua comunicação para se adequarem aos requisitos do modus operandi sustentável. Entre os acessórios, a Havaianas, que há alguns anos deu uma virada surpreendente no posicionamento da marca atingindo o status de cool, quer continuar no coração dos consumidores que agora compram sustentabilidade. O trabalho foi intensificado em 2019 quando incluiu o tema como o quarto pilar estratégico do negócio — junto a digital, inovação e global. Em 2020, veio o programa reCICLO, um dos bastiões da estratégia que neste mês está sendo expandido para 84 lojas monobrand em 24 cidades do Brasil, sem contar o mercado internacional onde foi implantado.
Para Zezé De Martini, diretora de Sustentabilidade e Reputação da Alpargatas, dona da marca, o desafio está na destinação de peças no pós-consumo. “Avançamos em muitos aspectos industriais, mas como evitar o descarte incorreto após o produto entrar no mercado é uma preocupação”. Hoje, 97% das sandálias Havaianas têm mais de 40% de matéria-prima reciclada. Já a coleta de usadas nestes dois anos soma 18 milhões de toneladas, que são transformadas em novos produtos, como tapetes emborrachados, daqueles de playground. O volume é suficiente para encher três caçambas, o que a própria empresa ressente-se por ser pouco. Para se ter dimensão do quanto estão distantes de uma coleta expressiva, a meta da empresa é chegar a recolher 10% do produto pós-consumo somente em 2030, e para isso levará o reCICLO a 100% das lojas, que hoje somam 522 no Brasil.
EDUCAÇÃO Engana-se, porém, quem pensa que só o consumidor final precisa ser educado. Roberta Negrini, CEO do Movimento Eu Visto O Bem, que trabalha com mulheres egressas do sistema penitenciário para produzir toda a sorte de costurados com tecidos 100% reciclados, sofre com o greenwashing de várias empresas. Uma das frentes de seu negócio é vender coleções especiais como roupas e material de decoração para companhias que revendem ao consumidor final (B2B2C). De acordo com ela, muitas marcas dizem que buscam novos fornecedores sustentáveis e responsáveis, mas querem pagar o mesmo de peças vindas da China com prazo de até 120 dias. “O que oferecem não paga a nossa conta. É desleal.”
Ainda bem, diz ela, existem exceções. O caminho foi procurar empresas com propósito, quando precisou pivotar o negócio por volta de 2019. Ex-executiva, Roberta largou tudo porque queria trabalhar com “algo maior”. Após estudar as opções, lançou uma marca de roupas feitas com tecido reciclado até passar por uma crise em 2018. Ela fechou as lojas, mas manteve a operação. Foi aí que olhou para as empresas. “Acessei minha rede de contatos e consegui fornecer uniformes para uma convenção da Natura.” Estava aí um nicho promissor: atuar no B2B. Hoje trabalha com cerca de 80 mulheres que ainda cumprem pena, outras dez que já deixaram o sistema, é certificada como Empresa B (que reúne empresas que equilibram propósito e lucro) e pelo selo The Best For The World, que reconhece empresas de impacto positivo, e atende marcas como Renner, Camicado (no sistema B2B2C), Boticário, Dengo, Natura e Tok&Stok (B2B).
Dentro desse oceano, surgem nova oportunidades. Uma delas é o que pode ser um novo conceito de Moda As a Service. Para Beatriz Luz, fundadora da Exchange 4 Change Brasil, “nessa nova onda, o aluguel de roupa tende a conquistar mais adeptos que não enxergam valor em um consumo exagerado ou na compra de peças de uso único.” Na marca Reserva, a novidade chegou com o projeto Camiseta Simples, serviço de assinatura anual com mensalidade de R$ 24,99. Em um período de um ano o cliente recebe três camisetas, além do mesmo valor todo mês como cashback . O objetivo, afirmou o Chief Operating Officer Jayme Nigri, é “minimizar o impacto ambiental, já que no final do ano o cliente retorna as camisetas, que são encaminhadas para reciclagem e se transformam em outros produtos”. De acordo com ele, o processo de adequação é longo. “Estamos em uma jornada de erros e acertos” e o impacto para o consumidor ainda não é mensurável: “Há algo de intangível na escolha do consumidor por uma marca, mas com certeza sustentabilidade passa a ser um dos valores que ele procura”, afirmou. E como ele, todas as indústrias. Inclusive, ou especialmente, a da moda.