Designer mineira de moda sustentável se destaca em concurso internacional
Brasil entre os finalistas, que desfilaram suas criações no último dia 7
O viés sustentável e a filosofia do upcycling sempre estiveram de certa forma presentes na vida da designer de moda sustentável Lívia Aguiar de Castro, mesmo que ainda não fossem termos em alta, como nos dias de hoje. “Meu avô por parte de pai criou a família fabricando tachos de cobre e vendendo quadros que retratavam arquitetura de igrejas e casas feitos com fios de cobre de reuso. Meu pai e seus irmãos cresceram trabalhando como artesãos. Por parte da minha mãe, minha avó sempre gostou de artesanato e fazia botas de tecido que nos dava no Natal, além de customizar peças com fuxico para minhas tias. Cresci amando tudo que era artesanal e herdando peças de roupa das minhas tias, primas e avó”, recorda a mineira, que, por sua vez, desenhava roupas desde que estava na escola e gostava de se expressar pela forma que vestia. A moda e o design, pois, se faziam presentes na vida dela nesses detalhes.
Mas foi ao cursar a universidade de Design de Moda e se deparar com a moda sustentável que encontrou o conceito para algo que organicamente já gostava e fazia. E veio a certeza absoluta que queria trabalhar nessa área. Neste mês, um reconhecimento de calibre acaba de ser somado à trajetória da moça de apenas 27 anos, que nasceu e vive em Betim. É que, este ano, Lívia se inscreveu – e foi selecionada – como finalista do Redress Design Award. “Conheço a ONG Redress há algum tempo e admirava muito o trabalho, porque eles sempre mostram como é possível criar moda sustentável com estética diversa. Os competidores trazem seu estilo e técnicas de reaproveitamento e modelagens zero lixo em criações únicas, provando que a moda sustentável é possível e tem grande apelo comercial”, comenta ela.
Lívia conta que os jurados avaliaram os competidores em critérios de design, marketabilidade e escalabilidade, além de como abordaram a durabilidade da peça e a reciclagem no fim da vida útil. “Tivemos que demonstrar conhecimentos sobre design, mas sobretudo os aspectos do material e de que forma ele é sustentável. Decidi me inscrever no Redress pois o concurso representa a moda responsável e engajada em comunidade como acredito que deve ser”, frisa.
O fecho do evento aconteceu no último dia 7 de setembro. “Na semana da final, tivemos bate-papos, palestras e desafios em grupo que foram avaliados por profissionais da indústria, processo conduzido por vídeo chamada pela equipe do Redress. Já no dia 7 aconteceu o desfile na Artis Tree, em Hong Kong, com convidados do evento, entre influenciadores digitais e profissionais da indústria, transmitido pelo canal do YouTube RedressAsia ao vivo. Os nove finalistas se conectaram por videochamada e foram mostrados no telão em alguns momentos. Foram duas designers do Sri Lanka, um da Índia, um do Chile, duas pela Espanha, um pela Itália e eu, representando o Brasil”.
As coleções enviadas foram compostas de quatro looks fisicos e um virtual. Os desfiles começaram com um vídeo de abertura explicando sobre a coleção, derivado do vídeo da série #MeetTheFinalists, produzida pelo concurso para apresentar o trabalho dos participantes. “Minha coleção foi a primeira na passarela e foi bem empolgante ver o resultado de vários meses de trabalho! O look virtual apareceu desfilando em um telão e está disponível como filtro de snapchat para que as pessoas provem a roupa virtualmente. Foi uma pena não estar presente pessoalmente no evento, algo que não foi possível devido à restrições do Covid no país, mas, ainda assim, foi uma experiência incrível”.
Ainda que não tenha vencido a competição, Lívia sabe que foi uma grande oportunidade apresentar a sua coleção para uma banca de profissionais associados à “Vogue Hong Kong”, Tal Appereal, Timberland, entre outros. “E até mesmo a uma das fundadoras do Fashion Revolution, Orsola de Castro. Nossas coleções ainda aparecerão na ‘Vogue Hong Kong de outubro, na revista do Redress e no catálogo do Redress”, enumera. As roupas continuam em exposição na Artis Tree em Hong Kong, com entrada franca, até dia 17.
Peças
Para o conCurso, Lívia optou pelo material com o qual iniciou sua jornada na moda sustentável, retomando o trabalho com tramas, mas, dessa vez, com padrão xadrez e em modelagens ainda mais ousadas e assimétricas, marca do seu trabalho como designer. “O concurso tem me trazido oportunidade e visibilidade. Pretendo aproveitar essa rede e expandir a RE.TRAMA (sua marca) para vender coleções de trama e outras linhas de produtos e continuar meu trabalho com acessórios, que me permite o aproveitamento dos resíduos por menores que sejam. A venda internacional e parceria com grandes marcas também estão entre meus objetivos”.
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista concedida ao PANDORA
Queria que me falasse do início da sua marca, a RE.TRAMA…
Ao ter contato com as possibilidades da moda sustentável, me deparei com o jeans, as calças eram um material fácil de ser obtido e quanto mais trabalhava com ele, mais possibilidades de criação eu “descobria”. Minha coleção de conclusão de curso em Design de Moda foi o início da RE.TRAMA. Esse foi o nome da coleção, porque eu desfiz calças e re-tramei em novos tecidos e possibilidades de textura, optanto por criar peças com modelagem geométrica que vestisse mulheres na faixa de seus 60 anos com muita elegância. O nome da coleção e o uso da matéria prima, calças jeans de segunda mão, deram inspiração para o início da minha jornada de explorar ainda mais esse material.
Após a minha graduação no ano 2018, iniciei uma aceleração na antiga Mooca, que fornecia um programa de consultoria para pequenos produtores e designers em BH, mas foi apenas em 2019 que iniciei a minha marca, RE.TRAMA, vendendo acessórios como brincos, feitos com o resíduo da minha coleção de TCC.
Participei de algumas feiras e comecei a trabalhar também com customização de peças para clientes. Meu propósito é cada vez mais reutilizar os mais diversos resíduos e evitar ao máximo materiais virgens. Prolongando a vida útil desses materiais e evitando seu descarte. Abri meu ateliê em 2021. No espaço produzo as peças para a minha marca que ainda gerencio sozinha. São brincos, pulseiras, anéis feitos com resíduos de jeans e transformação de bijuterias antigas. Customizo ainda bolsas, sandálias e roupas para clientes, além de criar coleções.
Pelo que você relatou, a questão da sustentabilidade sempre esteve de alguma forma presente na sua vida. Mas queria saber mais sobre essa conexão no âmbito profissional...
Veja, minha trajetória como designer de moda sempre esteve atrelada à sustentabilidade, desde que tive contato com o assunto. O Fashion Revolution e o acidente de desabamento do Rana Plaza (tragédia que ocorreu em abril de 2013 na capital de Bangladesh, Dhaka, quando um prédio desabou, deixando quase 400 pessoas mortas – elas trabalhavam numa indústria têxtil).aconteceram no período que eu estava cursando moda, no ano de 2013. Dessa forma, sempre pesquisei o assunto, participei de grupo de pesquisa e extensão na faculdade e tentei entender de que forma eu poderia atuar na moda trazendo essas questões para o centro. Produzir com o que tenho ao meu redor, sempre foi algo que me ajudava a reduzir custos e descobri que essa é também uma forma de lidar com o descarte e com a diminuição da emissão de carbono. Ao montar meu ateliê, em Betim, optei por colocar a mão na massa, ressignificando móveis em desuso, como uma cômoda que com a ajuda do meu pai transformei em um sofá, entre outros objetos de decoração.
Queria que me pormenorizasse que aspectos, hoje, fazem o seu trabalho ser considerado como sustentável.
A indústria da moda funciona na lógica da obsolescência programada, com tendências que estão disponíveis para o consumo rapidamente à preços que muitas vezes nos fazem comprar por impulso. O uso da internet e das redes sociais disseminam ainda mais essas tendências e nos faz enjoar dessas roupas ainda mais cedo, quando elas ainda teriam função. Ao mesmo tempo, o descarte de roupas, que são raramente recicladas, tem ocorrido em um volume muito grande, se tornando um problema ambiental. Além disso, esses itens geram um grande impacto no meio ambiente em cada fase de sua produção e alguns viram descarte por não serem vendidos. A exploração de mão de obra também é um problema muito presente na sociedade e na indústria da moda.
A moda sustentável deve reconhecer essas questões e ser transparente quanto às soluções que oferece a esses problemas. Os pequenos produtores, como é meu caso, já representam resistência ao produzir em uma lógica mais artesanal, em pequena escala.
Na RE.TRAMA e como designer, procuro reutilizar materiais que tenho ao meu alcance, isso é, dar soluções para bijuterias antigas, peças de estoque de lojas, roupas de segunda mão,… Ter um olhar voltado para transformar os mais diversos materiais, não me limitando à apenas um tipo, mas principalmente focando no pós consumo, em peças que as pessoas usam por anos, criam afeto, mas que por algum motivo, seja por estragar ou não servir, já não usam mais.
Para fazer as peças da coleção HeritageBlue, criada para o concuso do Redress, rasguei calças jeans de brechó, em busca de cores, texturas e acabamentos que o jeans com suas lavagens apresenta. Nessa coleção usei apenas um material, as calças jeans 100% algodão ou 98% algodão, 2% elastano, pensando na reciclagem no fim da vida útil da peça, produzi botões com as presilhas das calças, reutilizei os bolsos no design e utilizei resíduos gerados no acabamento das tiras jeans como enchimento das ombreiras do blazer. Criei soluções das mais diversas para utilizar o material ao máximo nos acabamentos e gerar menos descarte. Os botões, zíperes e demais peças de metal das calças usadas na coleção, serão utilizados na criação de brincos da RE.TRAMA, em uma coleção que lançarei em breve.
Além disso, também aplico esse pensamento de transformação nos produtos que faço. Caso não sejam vendidos ou estraguem, transformo, customizo. Esse pensamento é voltado para a circularidade e em tornar os processos cada vez menos impactantes a natureza. A sustentabilidade é um processo em constante evolução, é essencial tê-la como valor da marca e é o que sempre busco, em todos os meus processos.