Moda sustentável: uma alternativa verde ao ‘fast fashion’
Como todas as indústrias, a moda enfrenta o desafio de avançar em direção à sustentabilidade e os impactos negativos do modelo conhecido como fast fashion pressionam por uma reconversão em favor do meio ambiente e dos trabalhadores.
Com isso em mente, surge a moda sustentável, uma alternativa à produção e ao consumo têxtil que se concentra no conceito de redução, reutilização e reciclagem para cuidar das pessoas, do meio ambiente e do produto.
A indústria da moda em perspectiva
No livro Armario Sostenible (Guarda-roupa sustentável, em tradução livre), a comunicadora espanhola, publicitária e especialista em moda Laura Opazo defende que o vestuário transmite uma mensagem de mudança, pois é reflexo de uma sociedade em constante evolução.
Até a Segunda Guerra Mundial, o vestuário não era um produto de consumo diário. Segundo Opazo, não havia o conceito de usar roupas novas todos os dias, mas as roupas estavam ligadas à idéia de substituição.
As coisas, no entanto, iam mudar muito, e muito rapidamente.
A roupa como um produto de consumo
Nos anos 1950, os jovens não precisavam mais ir para a guerra, o que levou a um aumento da mão-de-obra disponível. As mulheres entraram no mercado de trabalho no Ocidente e houve uma época de boom econômico, pelo menos no Atlântico Norte, que cimentou a confiança na sociedade de consumo, o crescimento ilimitado e o chamado sonho americano.
Opazo argumenta que a conjunção destes fatores, junto ao progresso tecnológico e a noção de crescimento econômico ilimitado – à custa de recursos naturais limitados –, levou a um enorme aumento na produção industrial.
Há outro elemento-chave: a publicidade permitiu que o consumo fosse impulsionado por uma produção cada vez mais intensa.
“Entramos em um sistema muito desequilibrado no setor, especialmente a partir dos anos 1980, mas exageradamente desde 2000 até os dias atuais, quando o fast fashion, a moda rápida ou a moda de baixo custo, entrou em cena”, disse Opazo em entrevista por videochamada com a National Geographic.
Ela aponta que a maneira como produzimos, comercializamos, consumimos e descartamos nossas roupas parece, à primeira vista, barata e prática. Mas o custo para o meio ambiente e para a sociedade é enorme.
O que é o fast fashion ou moda rápida?
Para Opazo, a moda é um reflexo de tempos e comportamentos, de momentos e movimentos sociais, e não há nada de superficial nisso.
Mas “o comércio internacional, as novas tecnologias e a comunicação global deram à moda maior liberdade de movimento, e ela se espalhou pelo mundo muito rapidamente”, diz ela.
Até meados dos anos 1980, o modelo prêt-à-porter (francês para ‘pronto para usar’) era predominante no sistema de moda.
Entretanto, em apenas duas décadas, esse modelo foi substituído por outro, muito mais polarizado. “Por um lado, o luxo, com sua oferta exclusiva, e, por outro, a moda rápida, que oferece tendências com rapidez”, diz o segundo capítulo de Armario Sostenible.
Opazo afirma que as tendências são uma invenção da indústria da moda para incentivar o consumo. Para ela, sempre houve mudanças. Por exemplo, a incorporação da mulher no mundo do trabalho coincide com o uso feminino de calças, e a adoção de jeans representa um salto do uniforme dos mineradores para a rua.
“É normal que haja mudanças e tendências, mas o que não é normal é que seja a cada duas semanas”, alerta a pesquisadora.
Quanta emissão de CO2 é gerada pela indústria da moda?
De acordo com um estudo apresentado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) e compartilhado em seu site em 2021, a indústria da moda é a segunda mais poluente do mundo.
“Mais de 8% do total das emissões globais de gases de efeito estufa são produzidos pela indústria de vestuário e calçados”, disse Brenda Chávez, autora de Tu Consumo Puede Cambiar el Mondo (Seu consumo pode mudar o mundo, em tradução livre), em conversa por e-mail com a National Geographic. E a tendência é de aumento – se nada mudar, as emissões da indústria devem crescer mais de 60% até 2030.
Segundo Chávez, antes da pandemia da covid-19, o negócio global da moda produzia 150 bilhões de peças de vestuário por ano, muito além das necessidades de uma população mundial de 7,9 bilhões.
A indústria da moda e a poluição da água
Além do aumento dos gases de efeito estufa, a indústria da moda tem um sério impacto sobre os recursos hídricos. De acordo com dados da UNCTAD, em um ano a indústria utiliza 93 bilhões de metros cúbicos de água – a indústria que mais consome água – e descarta meio milhão de toneladas de microfibras (o equivalente a 3 milhões de barris de petróleo) no mar.
“As microfibras plásticas que saem do vestuário sintético para a água representam 85% do material sintético encontrado ao longo das margens do oceano, ameaçando a vida marinha e acabando em nosso suprimento de alimentos”, advertiu Chávez.
Estamos poluindo a água mais rapidamente do que a natureza pode reciclá-la e purificá-la, e que a indústria têxtil é um dos principais culpados.
Chávez cita números da Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, que indicam que o setor têxtil é responsável por pelo menos 20% das emissões de águas residuais.
Mas as consequências negativas de nosso modelo de produção e consumo de vestuário não são apenas ambientais.
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Jeans: peça mais versátil é também uma das que mais polui
Uma das peças coringas do nosso guarda-roupa é também uma das que mais impactam o meio ambiente durante a produção. “Fazer um par de jeans requer cerca de 7,5 mil litros de água, o equivalente à quantidade que uma pessoa média bebe em sete anos”, aponta relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
No Brasil, o projeto Pegada Hídrica Vicunha – do Movimento Ecoera, empresa de consultoria e ensino de sustentabilidade para os mercados de moda, beleza e design – mapeou o consumo de água no ciclo de vida de uma calça jeans no Brasil, desde o plantio do algodão, até o consumidor final. Os resultados mostraram que a indústria brasileira gasta, em média, 5.196 mil litros de água para produzir uma única peça de calça jeans.
Para Marina Colerato – fundadora do Instituto Modefica, uma associação privada de mídia, pesquisa e educação sem fins lucrativos –, o jeans impacta para além do gasto de água. A produção desse tecido também pode estar relacionada ao uso de químicos que contaminam água e solo, ao desmatamento para a plantação de algodão e a todos os problemas da exploração de petróleo para uso em fibras sintéticas – como o poliéster e o elastano.
“Setenta por cento dos impactos ambientais e sociais do ciclo de vida de uma peça de jeans é feito durante a produção. Ou seja, está totalmente na mão da indústria e dos grandes produtores. O restante dos impactos estão no descarte irregular”, diz Colerato citando dados do relatório Fios da Moda 2021, realizado pelo Modefica.
As consequências sociais do fast fashion
Em seu livro, Opazo afirma que a indústria têxtil também promove desigualdades sociais, oferecendo condições de trabalho precárias e contribuindo para aumentar o abismo no desenvolvimento global entre os hemisférios norte e sul.
Opazo investiga como o fato de produzir mais e a busca da indústria para maximizar lucros foi imposta a despeito dos direitos dos trabalhadores e condições mínimas de direitos humanos.
“As multinacionais do setor, que têm deslocado a produção, trabalham em países em desenvolvimento, onde é muito mais barato fabricar o vestuário”, acrescentou ela.
O livro Armario Sostenible detalha como as grandes empresas do setor trabalham com empresas intermediárias, que, por sua vez, subcontratam serviços a empresas menores, o que leva a uma rede difícil de controlar.
O elo mais fraco da cadeia, ou seja, os funcionários, é o que mais sofre. Ela argumenta que a necessidade de responder ao ritmo sempre crescente de entrega para atender à demanda leva a longas horas de trabalho e salários desvalorizados.
O que é moda sustentável?
Contra esse modelo destrutivo, emerge um movimento de moda sustentável. A ONU formou a Aliança pela Moda Sustentável na Assembléia das Nações Unidas para o Meio Ambiente de 2019, que ocorreu em Nairóbi, Quênia.
Trata-se de uma uma iniciativa criada junto com organizações parceiras, que visa contribuir para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) “através de uma ação coordenada no setor da moda”.
Para Chávez, moda sustentável refere-se ao surgimento de um tipo de oferta onde diferentes realidades coexistem. Por um lado, marcas com critérios sociais, ambientais e econômicos decentes, comércio justo, criadores locais e artesanato tradicional.
Por outro lado, o surgimento de alternativas que permitam prolongar a vida útil das roupas e reutilizá-las (em segunda mão, empréstimo, aluguel, bibliotecas de moda, armários baseados em nuvens) ou que facilitem a descapitalização dos guarda-roupas (permuta, lugares de troca, auto-costura).
Segundo Chávez, essa alternativa emergente repensa a questão do vestuário, distribuição, marketing, uso e consumo, promovendo lógicas que colocam o cuidado com a biodiversidade, as pessoas e a vida no centro de seus modelos.
Embora a moda sustentável ainda não represente uma concorrência à indústria convencional, para Chávez ela desafia, por exemplo, a aceleração dos ciclos da produção têxtil, que, nos caso do fast fashion, lança mais de 50 coleções por ano – e é acompanhada pela moda de luxo.
Moda sustentável: a economia circular aplicada à indústria têxtil
Naturalmente, as definições de moda sustentável variam. Mas a busca por um desenvolvimento mais harmonioso, que deixe para trás a moda rápida, é um consenso entre todos aqueles que promovem este movimento.
A economia circular é a forma de produzir, armazenar, distribuir e consumir bens de maneira responsável, utilizando, por exemplo, materiais não contaminantes, prolongando a vida útil do objeto, reciclando, reconvertendo e observando as condições dignas dos trabalhadores da indústria.
“Moda sustentável é senso comum, é humanidade e é pensar no futuro, porque moda rápida só pensa a curto prazo, esvaziando nossos bolsos e prejudicando nosso meio ambiente”, diz Chávez. “A moda sustentável, por outro lado, busca um equilíbrio.”
O modelo também é chamado de slow fashion (moda lenta), porque, como Chávez explica, ele propõe uma produção sustentável, desacelerada, descentralizada, em pequena escala, local, ecossocial, que respeita os limites biofísicos da terra e mantém as tradições têxteis indígenas.
Apesar dos conceitos e ambições crescentes, na prática, poucas marcas podem ser consideradas totalmente sustentáveis. “Acontece muito que eles cuidam de um dos pilares, ou reciclam, ou usam algum algodão orgânico, ou trabalham com alguns artesãos e é por isso que eles se anunciam como ecológicos ou sustentáveis”, disse Jean Verdier, designer e especialista em moda sustentável fundador da iniciativa Fashion Green, no México, em entrevista à National Geographic.
Nesse sentido, a transparência nos relatórios das ações de uma empresa será a chave para determinar quem realmente cumpre com o novo paradigma.
De acordo com Gougy, na lógica da organização, o mais importante é não se distrair. Em outras palavras, as mudanças climáticas são uma realidade. “Pedimos aos empreendedores que revejam, dentro de sua cadeia de valor, como eles podem ser conscientes e coerentes.”
Assim, se uma marca não pode substituir um determinado tecido, ela pode tomar outras ações dentro do processo de produção, como, por exemplo, buscar reutilizar tudo, não descartar nada, ter bons contratos de trabalho e até mesmo estudar o design do produto para introduzi-lo na economia circular.
No caso de Gougy, seu projeto trabalha sobre um conceito poderoso: a cultura da reciclagem e do cuidado, herdada das gerações anteriores.
“A figura da vida da mulher, o valor da família, a revalorização do trabalho manual, a reutilização dos resíduos urbanos e industriais e o uso de fibras naturais estão incorporados no design de cada uma de nossas peças de vestuário”, descreveu ela.
Para Gougy, a sustentabilidade está ligada ao cuidado e ao amor. “Quando falamos de moda, falamos de cultura. A moda sustentável nos leva de volta às nossas raízes e aos nossos começos.”
Economia circular: a experiência brasileira
Flávia Aranha, 36 anos, é uma renomada designer brasileira. Originária de Campinas, estado de São Paulo, ela é uma das precursoras da moda sustentável no Brasil e proprietária da marca que leva seu nome.
Para ela, de nada adianta que o produto final seja feito de forma limpa se a matéria-prima vier de processos que causam vulnerabilidade social e incentivam o consumo desenfreado.
“Eu estava trabalhando para uma marca tradicional de roupas no Brasil, que iria começar a importar roupas da China e da Índia”, contou Aranha em entrevista à National Geographic. “Passei 40 dias naqueles países monitorando fornecedores e visitei muitas fábricas com condições de trabalho desumanas. Vi idosos e crianças com o rosto coberto de jeans azul e rios coloridos com pigmentos químicos.”
Foi precisamente a angústia de ver essa situação que a levou a criar sua própria marca em 2009. Como resultado, as peças de vestuário que levam seu nome usam tecidos de uma variedade de fibras ecológicas (como fibras de caule de banana), assim como algodão orgânico, produzido por agricultores familiares e cooperativas.
Moda sustentável: mudança política e estrutural
Todos os especialistas consultados concordam que o nível atual de consumo é insustentável. “[O modelo predominante] não é compatível com a sustentabilidade”, diz Aranha. “Para que a indústria têxtil como um todo seja sustentável, precisamos de uma mudança política e estrutural.”
A fabricação sustentável de tecidos e vestuário final produzidos por marcas comprometidas com o meio ambiente, como o de Flávia Aranha, envolve inevitavelmente a contratação de mão-de-obra em condições decentes. Essa força de trabalho é frequentemente composta, em muitos casos, por mulheres e imigrantes, como comenta a designer brasileira.
“Não se pode separar o social do ambiental quando se fala em ser uma empresa sustentável”, enfatiza Aranha. “É necessário criar redes de abastecimento onde haja cooperação e trabalho decente, assim como um compromisso com um modelo circular de produção.”